Rio de Janeiro-RJ: Mobilização Internacional Indígena: Dia da Resistência
Neste domingo, 19 de abril, xs indígenas remanescentes da Aldeia Maracá’ nà (Maracanã) e ativistas apoiadorxs, se reuniram em parte do terreno de 14.300m² pertencente a estes povos, atualmente reduzido a área do antigo prédio, que já foi o museu do índio, e uma pequena parte asfaltada atrás do imóvel.
O evento chamado “Mobilização Internacional Indígena: Dia da Resistência” se iniciou pela manhã e seguiu com várias apresentações da cultura indígena. Além dos rituais, preparação de Rapé (medicina indígena), pintura corporal, cantos, círculo das mulheres, entre outros, foram feitas rodas de debates com apresentações de histórias indígenas e suas lutas. De noite o evento foi encerrado com a apresentação de um filme seguido de debate.
Ativistas do México (Coletivo Subversiones) estiveram presentes representando os estudantes desaparecidos pelo estado mexicano em 26 de setembro de 2014. Mães de jovens assassinados nas favelas pela violência deram depoimentos e xs 23 ativistas perseguidxs pelo estado também foram lembrados pelxs ativistas indígenas.
O estádio do Maracanã também sediava o jogo entre Flamengo e Vasco, e os torcedores que se dirigiam ao Maracanã foram surpreendidos por cartazes relacionados à causa indígena, de resistência e luta. Isso fez com que algumas pessoas se aproximassem e participassem do evento. Crianças e adultos participaram de algumas atividades, como a pintura corporal indígena.
Um grande contingente de Policias e Guardas Municipais estava presente. No início do evento, um grupo de PMs entrou no espaço onde ocorria o evento, mas logo foram solicitados a se retirar, o que ocorreu apenas parcialmente, pois dois policiais ainda permaneceram no local. Guardas Municipais também entraram para apreender produtos de vendedores ambulantes que trabalhavam durante o jogo e utilizaram o espaço como fuga para resguardar suas mercadorias. Os Guardas também foram solicitados a se retirarem.
Um altar foi montado, reunindo objetos das diferentes etnias, representando o conhecimento sagrado e a medicina ancestral. O indígena Ash Ashaninka explicou os diversos elementos que compunham o altar, enquanto contava a história da Aldeia Maraká' nà e a luta indígena no Brasil.
Uma biblioteca popular foi montada no local, uma toalha com frutas e água foi colocada para que qualquer um pudesse comer. Quando as frutas chegaram, um indígena disse que infelizmente essas tinham sido compradas em um mercado e não coletadas como tradicionalmente. Antes da expulsão, os índios plantavam no local, agora o terreno foi reduzido ao mínimo e invadido pelas obras do estádio do Maracanã. "Não há mais terra", denuncia Ash Ashaninka, “não esse asfalto, não é cultura nossa isso aqui, é terra, nós queremos terra!”
O objetivo do evento era estar em oposição à comemoração do dia do Índio inserida no calendário civil, que passa por cima das demandas dos povos originários, e denunciar o impasse político-econômico que está submetido o terreno de 14.300m² e o prédio onde funcionava a “Universidade Aldeia Intercultural Indígena Maraká' nà” desde 2006, mantida por indígenas de diversas etnias, que foram expulsos pela última vez em 16 de dezembro de 2013. Desde então, o imóvel está abandonado e sob vigilância policial.
HISTÓRIA DO IMÓVEL
Remontando ao século XIX, a construção do prédio data de 1862, sendo propriedade do então Duque de Saxe. Em 1910 o prédio e a área de 14,300m² foi doado ao Serviço de Proteção ao Índio - SPI, órgão do Estado sob comando do Marechal Rondon. A função da Instituição era preservar a cultura indígena brasileira.
Entre as 1953 e 1978, por intermédio do Antropólogo Darcy Ribeiro, o local abrigou o Museu do Índio, vindo a ser transferido para o bairro de Botafogo em 1977; a partir de então o prédio e o terreno foram abandonados pelo poder público.
Em 2006, indígenas ocuparam o lugar para criar um espaço de convergência entre as diversas etnias e servir de articulação entre a floresta e a cidade. Isso é essencial para a continuidade das lutas indígenas e para a sua busca pelos direitos perdidos, pois, mesmo que a maioria das aldeias se localizem nas florestas, é na cidade que todas as políticas e decisões sobre as florestas são tomadas. Em audiência pública realizada na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, após a primeira tomada do prédio pelo estado e a iniciativa privada, o índio Auaue Auadegá responde ao porque o índio precisa estar na cidade:
“mas o que é que estão fazendo com a floresta? […] os indígenas estão nas margens, então o que fizeram com o Brasil foi abrir uma imensa clareira. Nós estamos nas margens, nós estamos nas matas. Mas nós sabemos que nós precisamos também estar na cidade, porque é a cidade que determina que vai derrubar a mata. Por isso nós estamos na cidade."
Essa importância do índio na cidade pode ser exemplificada pelo desarquivamento da PEC215 que transfere para o Congresso a última palavra sobre a oficialização de Terras Indígenas (TIs), Unidades de Conservação e Territórios Quilombolas, que até agora são responsabilidade do governo federal, além de outros retrocessos ambientais. O desarquivamento foi feita pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e caso aprovada, significaria a paralisação dos processos de oficialização de áreas protegidas, que garantem os direitos das populações indígenas e tradicionais e paralisação dos processos de conservação de áreas de preservação, como a Amazônia e de preocupação com as questões climáticas.
A ocupação desse prédio abandonado pelo estado, mas que historicamente tem sediado e representado a reconquista do espaço tomado a mais de 500 anos, tem um valor e necessidade política, e nunca serviu como um mero espaço de moradia. Nas palavras de Auaue Auadegá:
“A Aldeia Maraká' nà não é, não foi e não vai ser, apenas uma solução de moradia, porque nós não temos prazer em ficar respirando fumaça de automóvel, não. Mas nós estamos aqui respirando fumaça de automóvel, levando gás de pimenta no rosto. […] Nós não queremos espelhinho não, nós queremos nossas terras, e se nós queremos aquele lugar, se nós defendemos aquele lugar, é para ser uma embaixada indígena, um espaço de cultura [...]”
A Aldeia se tornou uma “Universidade Indígena” capaz de promover a troca e transformações culturais através do encontro das várias etnias, além de dialogar com a sociedade. Os portões do edifício eram abertos todos os sábados para receber pessoas que queriam conhecer a cultura indígena, como seus hábitos, rituais, comidas etc., através do diálogo direto com os indígenas e não, como geralmente ocorre, através apenas de centros de referência, livros e mídias que acabam por mostrar um índio distante, idealizado e estereotipado.
No entanto, em 22 de março de 2013 esse processo começa a ser interrompido pelo desalojo da Aldeia Maraká' nà de forma violenta pela PMERJ. Devido aos projetos da Copa do Mundo e das Olimpíadas, que inseriram a cidade do Rio de Janeiro em uma lógica de transformação do cenário urbano, voltado para o mercado das grandes empresas e do capital, o edifício de mais de 150 anos de história de resistência passa a ser uma peça indesejada.
O projeto de reforma e ampliação do estádio do Maracanã passava pelos 14.300m² da área historicamente indígena, que viria a se tornar uma área de estacionamento para torcedores. Empresas privadas seriam as beneficias pelo empreendimento, tais como a construtora Odebrecht e o empresário Eike Batista.
Com a chegada da polícia para a remoção das pessoas e para evitar o conflito, os índios decidem sair sem resistência mas, enquanto faziam um ritual de despedida, a polícia de choque iniciou a desapropriação pela força. Crianças e idosos foram alvejados com sprays de pimenta e gás lacrimogênio e pessoas foram detidas. Durante as negociações foi prometido um espaço em Jacarepaguá, mas eles recusaram pelo valor simbólico do prédio no Maracanã e pela precariedade do espaço em Jacarepaguá. Para Urutau Guajajara este imóvel é um patrimônio imaterial, histórico, da cultura indígena:
“nosso terreno é esse aqui, esse é o nosso terreno” […] vamos juntar todas as nossas forças para retornar para cá, porque esse é o nosso terreno, esse é o nosso patrimônio, esse não se vende, não se troca, não se dá, não se empresta, é o patrimônio dessa população aí”
Alguns meses depois, em agosto, os indígenas reocuparam o imóvel, retornando com as atividades culturais do espaço. No mesmo mês, o prédio é tombado e no dia 23 de setembro, o juiz da 7ª Vara de Fazenda Pública Federal assinou despacho impedindo a demolição do prédio.
Contudo, no dia 16 de dezembro de 2013 o imóvel foi novamente retirado dos indígenas para servir aos interesses empresariais. Durante a remoção, a polícia novamente utilizou da violência, sem a apresentação e ordem judicial. Em protesto, o índio Urutau Guajajara, de 64 anos, subiu em uma árvore, sendo retirado pelos bombeiros apenas 26 horas depois. Ele exigia a apresentação de ordem judicial que justificasse o despejo, o que não ocorreu.
Sete dias após a reintegração de posse do imóvel, alguns indígenas conseguiram entrar no prédio para retirar seus pertences que ficaram durante o processo violento de desocupação. Um deles foi Urutau Guajajara, que ao entrar, se deparou com o prédio todo revirado. Muitos dos pertences que haviam permanecido, estavam danificados, entre eles, livros da biblioteca estavam jogados e barracas foram rasgadas. Outros pertences, como equipamentos, entre outros, desapareceram. O prédio, após a desocupação, ficou permanentemente ocupado pela polícia. (Veja o vídeo feito pelo próprio Urutau Guajajara, fonte Rio na Rua)
Desde então, o prédio encontra-se abandonado sob vigilância policial. A área total do terreno de 14.300m² já foi invadida pelas obras do Maracanã, restando apenas os 1.600m² referentes ao prédio, mais uma área que foi asfaltada para virar um estacionamento. O estado gradeou todo o prédio e o isolou com tapumes.
A IMPORTÂNCIA DA ALDEIA MARAKÁ' NÀ
“O que nós temos é a Transformação dessas culturas indígenas das várias etnias, não pela imposição de uma cultura sobre todas elas, mas pelo encontro das várias etnias, umas com as outras. Então há um processo de transformação dessas culturas, dessas etnias em curso. Processo interrompido pelo desalojo da Aldeia Maracanã. […] Nós não desistimos do espaço que é nosso por direito.” - Auaue Auadegá
Além da importância do intercâmbio policultural que a Aldeia Maraká' nà proporcionava, como falado acima, ela era a presença constante do indígena na cidade, no cotidiano de quem apenas conhece a cultura nativa do Brasil pela televisão, jornais ou revistas. A Aldeia é um ato de resistência.
A proposta dos governos é a da construção de um Centro de Referência indígena, que além de ser uma proposta apenas, que talvez nunca se realize de fato, seria ainda insuficiente, pois seria uma iniciativa estatal e não dos próprios índios de falarem por si e de si mesmo. Ash Ashaninka argumenta nesse sentido:
“Centro de Referência Indígena é para mostrar o indígena morto. Nós somos culturas vivas, e assim como nossos pajés, somos doutores, somos mestres, que têm o contato com a natureza, que sabe dela e é isso que queremos dar continuidade através da nossa Universidade. […] Centro de Referência é para o turista ver […] queremos ser a universidade e ensinar para as populações como, nós indígenas, realmente vivemos.”
Nesse mesmo sentido, ele faz uma crítica bastante legítima às ciências sociais que se coloca em uma posição de autoridade e saber para falar do outro, essa também é uma forma de poder e de opressão, pois submete o conhecimento cultural indígena ao saber acadêmico das universidades e limita-se o espaço para que essa população tenha voz. O que os indígenas querem é serem os agentes de seu próprio saber, querem mostrar o conhecimento que eles têm, preservando e atualizando sua cultura, indo contra a imposição cultural que o “branco”, isto é, a cultura de origem europeia, se faz sobre eles.
“Nós queremos realmente uma educação diferenciada, queremos nossas aulas de Tupi, nossas aulas de Aruaqui, nossas aulas de caribe, nossa escola, e aqui é a universidade, o lugar perfeito […] que aqui se ensina tradição e cultura ancestral. […] E os antropólogos nos roubam esse direito, vendendo livros aí, falando que eles são os doutores, melhores que os nossos pajés, e quando os nosso pajés vêm aqui, são tratados como pessoas não desejadas.” - Ash Ashaninka
Durante o evento deste domingo, 3 mulheres foram diplomadas pela Universidade Intercultural Indígena Aldeia Maraká' nà. O diploma não era um papel como na tradição europeia, mas um arco e flechas. Foram a indígena Mônica Lima e duas mães que tiveram seus filhos assassinados pelo estado, Ana Paula e Deize.
A Aldeia não se propõe em ser apenas um espaço para índios, do mesmo modo que a cultura indígena não se restringe a rituais, danças e pinturas. A cultura é, acima de tudo, um modo de ser, de agir e de encarar o mundo. Todo o discurso indígena é inclusivo, principalmente aos outros povos de nossa sociedade que também são calados e marginalizados. Foi nesse sentido que as duas mães, moradoras de favelas do Rio de Janeiro, foram diplomadas, como guerreiras. Segundo a indígena Mônica Lima “por todos aqueles que são os oprimidos”, tanto os índios, quanto o “povo da favela” e os camelôs que estavam sendo oprimidos pela Guarda Municipal durante o jogo de futebol.
O indígena Arão, advogado que defende judicialmente a causa da Aldeia completou:
“Nós queremos que esses 14,300m² sejam 14 mil contra a intolerância, 14 mil de cultura indígena, de atividades culturais, de paz. Fora essas opressões todas que representam o BOPE o Choque, que representam a intolerância de certa forma.”
Ao assistir o vídeo, fica nítida a principal pauta da luta indígena: uma luta contra o estado e o capitalismo, sistema social, político e econômico oposto ao da sociedade indígena, essa talvez seja a essência para entender o motivo do conflito. A resistência indígena à cultura da cidade, não é apenas uma repulsa aos carros, à poluição e ao cotidiano urbano, mas uma repulsa a um modo de ser, de agir e de encarar o mundo que é pautado pelo lucro, pela hierarquia opressora do estado. A Aldeia Maraká' nà está sendo impedida de utilizar aquele espaço devido aos interesses empresariais da Odebrecht que se faz da força opressora do estado para agir sem obstáculos.
Apesar do “branco” ser visto como invasor, não é por uma questão meramente étnica que os índios reclamam, não é pela expulsão do “branco”, mas pelo direito de expressar sua própria cultura ancestral indígena, sem a imposição da cultura branca, europeia. O índio quer o direito a sua terra, à floresta, de continuar vivendo sem a interferência de qualquer estado e do capitalismo, do mesmo modo que quer ter o direito de ter seu espaço na cidade, para não ser esquecido e para que “a cidade” não decida acabar de vez com “a mata”.