Um guerreiro a menos: adeus a Alexandre Mendes (1977-2017)
Na madrugada de domingo para segunda-feira 17/04/17, faleceu Alexandre Mendes de Vasconcelos, aos 40 anos de idade. O valoroso companheiro foi atropelado enquanto se exercitava fazendo uma caminhada às margens da rodovia RJ-106, no Arsenal, em São Gonçalo (RJ), na manhã do domingo de Páscoa. Um carro perdeu o controle ao ultrapassar um ônibus e atingiu Alexandre, que, hospitalizado, não resistiu aos ferimentos, vindo a óbito horas mais tarde.
“Meu pai tinha esse hábito de correr às margens da RJ-106. A gente ficava preocupado, mas ele dizia que era a única opção segura para se exercitar, já que, segundo ele, correr pelas ruas do bairro se tornava perigoso, já que os casos de assaltos a pedestres são comuns na localidade”, declarou o filho mais velho de A. Mendes, ao jornal A Tribuna de sexta-feira 21.
Nascido em 12/03/1977, cedo manifestou preocupações político-sociais. Já no início da década de 1990, Alexandre editou com amigos o fanzine quadrimestral Terceiro Mundo, no município de Niterói (RJ). Tratava-se duma publicação alternativa que trazia críticas sociais fortíssimas, atacando corajosamente o patronato, o Estado e a burguesia em geral, sem esquecer de abordar outros temas como: contracultura, poesia, ciência, história em quadrinhos, música etc. Veio a editar – igualmente sem fins lucrativos – o fanzine O Berro a partir de 2008, também com predominância da temática político-social. Publicou também outro zine, de curta duração, chamado Gambiarra. Manteve, durante muito tempo, o blogue Peresteca, com poemas sociais e reflexões críticas sobre a realidade que nos cerca.
Por volta de 2010, foi diretor e editor do jornal mensal Impresso das Comunidades, junto com o jornalista Fabio da Silva Barbosa. O jornal em questão foi pioneiro, em Niterói, a fazer reportagens em favelas e bairros pobres em geral, dando voz ao povo que habita esses espaços esquecidos pelo Estado e pela mídia dominante. Era comum que, durante as reportagens, os dois amigos editores ouvissem de moradores dessas regiões: "Nossa! É a primeira vez que alguém vem aqui nos escutar!".
Alexandre era de uma alegria contagiante, sempre sorrindo, brincando, fazendo saudáveis pilhérias. Nunca se deixou abater pelas dificuldades, que não foram poucas em sua vida. Começou a trabalhar ainda na adolescência. Foi camelô, chegando a vender mariola em sinais de trânsito. Labutou como atendente em lanchonete, entregador de fast food, cobrador de ônibus... Atuando junto à categoria rodoviária, criou na época o blogue Retomada, no qual escrevia textos com o pseudônimo de Malatesta (em homenagem ao anarquista italiano Errico Malatesta), buscando conscientizar trabalhadoras(es) sobre a importância das lutas sindicais. Formou-se em História quando já era pai de três filhos e trabalhava seis dias por semana na roleta do ônibus. Deu aula em escola particular. Aprovado depois num concurso para a CLIN, Companhia Municipal de Limpeza Urbana de Niterói, estava ocupando cargo de fiscal.
Na mesma reportagem do jornal A Tribuna que noticiou o falecimento do companheiro, veem-se declarações de moradores da região em que ocorreu a tragédia. “Eu moro aqui perto, às vezes venho correr por aqui, sei do perigo, mas infelizmente não temos onde nos exercitar e só nos resta correr este risco. Além disso, eu tenho que pegar todos os dias os meus filhos na escola, não deixo a mãe pegar porque tenho medo de algo acontecer. Se for para acontecer algo, que seja comigo”, contou o aposentado Roberto Antônio dos Santos, de sessenta anos, pai de quatro crianças que estudam em uma escola próxima às margens da estrada.
A RJ-106 é uma rodovia estadual com cerca de duzentos quilômetros de extensão, que liga a RJ-104, na altura do município de São Gonçalo, à BR-101, altura do município de Macaé, no norte do estado. Questionada pelo jornal acerca dos riscos que a rodovia expõe o povo, a Prefeitura de São Gonçalo deu uma nota afirmando que, apesar de o problema ser de responsabilidade do Governo do Estado, irá cobrar soluções ao órgão competente para que casos como esse não se repitam. A Prefeitura de Maricá também informou que a responsabilidade pelas rodovias é do Departamento de Estradas de Rodagem do Rio de Janeiro (DER-RJ).
Também procurado por A Tribuna, o DER não respondeu aos questionamentos. Um funcionário do órgão, que não quis se identificar, disse que o departamento está sem internete e que os funcionários estão sendo dispensados mais cedo, devido à crise financeira do Estado. Mas nos cabe perguntar: que “crise” é essa em que há tanto dinheiro para megaeventos (Copa e Olimpíada) e para obras fúteis em bairros granfinos?
No jornal Impresso das Comunidades nº 7 (maio/2010), Alexandre Mendes escrevera: “Os moradores de áreas consideradas ‘nobres’ devem ter questionado qual a parcela de culpa deles em um desastre como o que ocorreu em diversas comunidades, nas últimas tempestades. Eu diria que o fato está ligado à palavra omissão, pois ninguém que mora em área privilegiada reclama sobre o emprego de verbas públicas em seu bairro, quando se trata de um monumento caro ou um chafariz inútil”. Estas palavras continuam atuais e conclamam a todos a buscar que as verbas públicas não sejam desperdiçadas em inutilidades ou em isenções para empresas milionárias (como recentemente o governo do estado do Rio fez, isentando de impostos cervejarias, bancos, joalherias etc.). Que o dinheiro público seja usado em obras de interesse público: criação de infraestrutura para que o povo possa viver de maneira saudável e plena sem correr riscos em seu dia a dia.
Pensando em tudo isso, leiamos abaixo alguns poemas de Alexandre Mendes, inspiradores para que continuemos na luta apesar dos sofrimentos.
Ah!
Eu queria ser forte o suficiente
e mudar o mundo com o poder da mente
Entortar canhões, ver sorrisos contentes
Ah! Como eu queria!
Eu queria saciar a fome do mundo
e expurgar o político vagabundo
Limpar tudo aquilo que é imundo
Ah! Como eu que queria!
(A minha cara é bem feia, mas o meu coração é do tamanho de um planeta!)
Tranca
Reclamação e indignação
A multidão bradava em prantos
por justiça e liberdade
Por aqui, em todos os cantos,
clamavam os párias da cidade,
De repente, na madrugada
ouviu-se um forte estrondo
que vinha da parte mais elevada
estampido estampado pelo vão
da telha cinza-claro adentro
deitados no colchão
sem expor o seu lamento
Boca fechada, nem mais uma palavra.
Jesuira
Opa! São eles!
Abaixa aí!
Não se mexe!
Coração batendo a mil
já vi aquele carro
sinistro
vou meter o pé
até
Guerreiros do barro
Ruas de barro
cratera e buraco
não passa um carro
são cheias de mato
Ruas pisadas
por bravos guerreiros
manhãs, madrugadas
dezembro a janeiro
Combatem no front
se dão por inteiro
vassoura, bombril
colher de pedreiro
e voltam às senzalas
ônibus negreiro
para ruas de barro
filme rotineiro
Ruas de lama
porque tão esquecidas?
não sabem, senhores
que ali moram vidas
te fazem comida
e sala de estar
sinhô boa vida
poder descansar
Bravos guerreiros
servindo covardes
se faça a justiça
antes que seja tarde
Rotina da retina
O dia começa e acaba
O relógio gira sem parar
O dia procede a noite
Que procede o dia
Que procede a noite novamente
Tomo meu café, como meu biscoito
Visto minha roupa
Vou para meu trabalho
Será que hoje ainda é ontem,
ou hoje já é amanhã?
Olho para o sol: parece estar no mesmo local de ontem
Ao chegar no meu trabalho, bato o meu velho cartão
Aquele velho cartão amassado, que era novo no início de agosto
Aquele velho cartão amassado, que será substituido por outro novo
no início de setembro
Começo minha labuta
Será que hoje ainda é ontem,
ou hoje já é amanhã?
Começo minha labuta
O suor a escorrer
A mesma angústia
O mesmo tédio
Velha vontade de perecer
Chega a hora; bate o sino; dá o sinal
E na volta pra casa
O ônibus cheio
Como uma jaula
Vida animal
Será que hoje ainda é ontem
Ou hoje já é amanhã?
Chego em casa
Minha casa
A mesma casa: vou descansar
Entro em coma
e nos meus sonhos
Parece que tudo está a mudar
A Charola
Odeio o pobre de espírito
aquele que despreza o raciocínio
se deixa levar pelo mito:
abnegação do direito de pensar
nociva alimária
cervejinha e carnaval
na terra dos índios
que foram roubados
dos negros, mulatos
açoitados no arraial
Dia após dia
a morte a lhe espreitar
nas filas do SUS
ou esquina qualquer
em mais uma chacina
deixa filhos e mulher
Desamparados no mundo
sangrando eles se vão
na charola maldita
onde se encontram os passivos
se encontram os coniventes
merecedores do mundo em que vivem
alarido inerte - não há vozes em oposição
idiotas, tirem a venda dos olhos!
não há esperança, com a procrastinação.
Dia de fúria
Hoje eu despertei para a realidade das regras
O mundo me cobra uma postura: Viva sob regras, pois essas fazem o mundo girar
Vocês não me enganam mais!
Vou colocar em xeque toda minha credibilidade
meu trabalho, minha família
não importa: Quero dizer o que sinto
Acho que ganho muito pouco; um salário na proporção da minha liberdade
Hoje consigo compreender porque alguns ignoram as regras e matam, tomados pela fúria
As regras me sufocam, não consigo respirar
Falta oxigênio, não consigo respirar
Quero minha liberdade; aquela que as regras me roubaram
Quero sentir prazer em viver, bem mais que cinco minutos por dia
fazer o que eu quero, não o que me é imposto
Chega desse fantochismo barato
QUEM FAZ AS REGRAS NÃO SEGUE REGRAS
Quero exercer o meu direito de xingar: merda, porra e puta que o pariu
Quero andar pelado pelas ruas do Centro ao meio-dia
Maldito mundo sob regras...
As pessoas estão satisfeitas
Auxílio doença e auxílio desemprego
As pessoas estão satisfeitas
Copa do Mundo e Carnaval
Maldito mundo sob regras
me levando à destruição
Um cara
Era um cara feliz
com seu empreguinho estável
bom esposo e pai amável
nada tinha a reclamar
possuía um Palio novo
virava a chave, sem problema
levava os filhos ao cinema
nada tinha a reclamar
Era um cara preocupado
jogou a carteira sobre a mesa
devido ao corte de despesa
sua esposa a reclamar
alguns meses sem trabalho
desempregado e com fome
sua mulher com outro homem
resolveu lhe abandonar
Era um cara quase triste
sem emprego, sem família
trancou a casa, pé na trilha
sua existência a lamentar
tentou ser forte
e achou graça
trocou a honra por cachaça
e parou de reclamar
Era um cara desvairado
sem caminho ou direção
bebendo água de valão
debatendo com o ar
perdeu memória
perdeu a vida
correu pro meio da avenida
pra frente de um caminhão
Era um corpo destroçado
lá jazia o defunto
- Era só um vagabundo!
rabecão já vai chegar
Mínimo
Lambe logo o meu chão,
meu escravo; desgraçado
Deixa tudo bem limpinho,
porque eu pago seu salário
Pega esponja e desinfeta,
fedorento sanitário
Deixa tudo bem cheiroso,
porque eu pago seu salário
Serve logo meu almoço,
tô com fome, ordinário
Quero ver o seu sorriso,
porque eu pago seu salário
Agora compra meu cigarro,
não demora, meu lacaio
Quer ouvir um desaforo?
Porra, eu pago seu salário!
Te humilho com prazer
Quero você conformado
nós nascemos para isso
e eu pago seu salário
Poema
O Congresso depredado;
Delegacia incendiada;
colarinhos enjaulados,
são brancos, com certeza
Presidentes se matando,
em vez de soldados,
todas as vidas
em uma só poesia
sem métrica ou formato