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A ética dos comitês de ética em pesquisa

Junho 20, 2018 - 01:38
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“Ihh, esse comitê de ética em pesquisa implica com os projetos. Você conhece alguém de dentro do comitê para agilizar o processo? Pode prever uns 3 meses antes do parecer”

“Pergunta pro fulano que já submeteu projeto lá como é”

“Ahh, tal comitê de ética é tranquilo, eu conheço os integrantes. Já aquele outro vai embaçar”

“Tem que ser no formato deles, senão eles não aceitam. Escreve o máximo que você puder em tal campo”

“Você é orientado por qual pesquisador doutor? Só seu orientador pode fazer essa solicitação”

“Não posso fazer nada quanto a seus prazos apertados, existe um fluxo que precisa ser rigidamente seguido”

 

Comitês para ciências humanas e sociais

Foi quase um mês do mestrado dedicado a dar sentido às instruções, preparar os documentos, preencher os campos e recolher as várias assinaturas necessárias para o Comitê de ética em pesquisa (CEP). Os integrantes do CEP avaliam projetos pesando seus riscos e benefícios, mas sinceramente acho que não pesam o grande risco que correm tonteando os pós-graduandos dessa forma.

Antes de eu dizer mais bobagem digo que os CEP são importantes. Veja, eles surgiram de resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) [1], que é, a despeito de qualquer crítica, uma das poucas instâncias estatais da democracia brasileira que possui controle social.

Os CEP são locais e respondem à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), diretamente ligada ao CNS. Esse esquema primeiro surgiu para regular a pesquisa clínica e experimental com seres humanos. Regulação ética é essencial, né, dado o histórico de calamidades que os homens (“homens” mesmo, com gênero especificado) cometeram em nome da ciência. Então hoje, toda pesquisa que envolve diretamente seres humanos precisa ter parecer positivo dos comitês, desde um ensaio clínico de transplante de fezes até uma entrevista com profissionais.

As pesquisas de ciências humanas e sociais que envolvem sujeitos humanos precisam, portanto, da mesma forma que as pesquisas clínicas, ser submetidas à Plataforma Brasil, site associado ao CEP-CONEP e passar por avaliação ética. Isso já rendeu um tanto de descontentamento, treta e controvérsia na academia[2]. Um formato de avaliação estruturado para pesquisas biomédicas não é exatamente apropriado para pesquisas humanas e sociais. Não consegue, por exemplo, capitar a imprevisibilidade dos riscos de uma pesquisa construída na interação com seus sujeitos, como em entrevistas semi-estruturadas, observações participantes, etnografias. Ética, afinal, é um exercício feito a partir de cada relação. É isso que a diferencia da moral.

A mobilização dos pesquisadores em ciências humanas e sociais produziu efeitos e em 2016 o CNS aprovou uma série de medidas para adequar o sistema CEP-CONEP às pesquisas sociais e humanas. Desde então os projetos são diferentemente analisados segundo seu risco relativo e os CEP que pretendem analisar projetos de ciências humanas e sociais precisam ter profissionais com formação nessas áreas[3]. Além disso, houve uma ampliação dos quadros profissionais que compunham o CONEP para incluir pesquidores das humanas.

A saúde, no entanto, é uma área de pesquisa que fica ali entre a pesquisa biomédica e a pesquisa social e minha experiência indica que algumas inconsistências e assimetrias continuam. Caso você vá fazer uma pesquisa social em um hospital universitário (HU), por exemplo, seu projeto vai passar pelo CEP do seu instituto, mas também pelo comitê de ética do HU. E é bem provável que no segundo não sejam os profissionais das ciências humanas e sociais a avaliar os projetos.

 

Efeitos da estrutura

O trabalho para submeter um projeto ao comitê de ética é burocracia em sua forma mais primorosa. Receber diversas informações ambíguas ou conflitantes; ter que coletar várias assinaturas; encaixar seu projeto em um formulário quadrado enorme e com perguntas que não fazem lá muito sentido para a forma como a pesquisa vai se dar. É possível que a pesquisa tenha que se alterar no processo, não por uma questão ética em si, mas para se encaixar nos formatos e possibilidades do CEP-CONEP.

Mas sabe qual o resultado mais perverso de uma organização assim? Ela favorece os trabalhos de quem já está bem estabelecido, de quem tem relações políticas de influência nos institutos e conhece os CEP, seus integrantes e peculiaridades. Explico com os exemplos reais que abrem o texto.

A informação de qual comitê de ética é mais ou menos rigoroso nas análises é importante na estruturação de uma abordagem metodológica e na escolha do local da pesquisa. “Ahh, tal comitê de ética é tranquilo, mas aquele outro vai embaçar”. O conhecimento prévio de um comitê permite saber quais são as especificidades e sutilezas exigidas na submissão dos projetos para evitar negativas e reavaliações. “Pergunta pro fulano que já submeteu projeto lá como é”. E eu não falo aqui de sutilezas éticas, mas de forma e escrita mesmo. “Tem que ser no formato deles, senão eles não aceitam”. Não é a toa que sugerem extra-oficialmente que se converse com alguém de dentro para agilizar os processos. Na burocracia, contexto é conveniência: a regra mais dura e rígida a quem não importa e a maior agilidade no processo dos colegas. Qual é, afinal, a ética envolvida nos comitês de ética?

“Você é orientando de quem? Só seu orientador pode fazer essa solicitação”. E eu respondo, quem orienta uma pesquisa de pós-graduação deveria importar para a obtenção de um termo de concordância assinado? A análise ética vai ser feita por um critério personalista?

Além de todos esses efeitos, o comitê de ética também afeta os tempos de pesquisa. Submissão no CEP só pode ser feita na pós-graduação depois da qualificação, ou seja, no mínimo na metade do curso. Soma aí mais um mês para preencher dados, conversar com quem entende o fluxo administrativo, juntar documentos assinados necessários e mais alguns meses até avaliação do projeto e emissão do parecer final. Sobra um terço do mestrado pra conduzir a pesquisa de campo, analisar os dados e escrever a dissertação.

Um aluno de graduação que quisesse fazer seu TCC ou iniciação científica em um ano com uma pesquisa inédita ou nova em humanos teria que esperar uma boa parte desse tempo até ter o parecer do comitê de ética. Não sobraria tempo hábil para condução da pesquisa. Consequentemente, graduando faz pesquisa em humano necessariamente vinculada a um projeto de pesquisa previamente aprovado de seu orientador.

E as pesquisas autônomas, como ficam? Quando o pesquisador que propõe o projeto não tem vínculo formal com uma instituição com comitê de ética próprio, o CONEP julga o projeto ou repassa para um CEP cadastrado emitir o parecer. Sendo assim, qual é o destino de projetos que não estão sob tutela de um professor doutor vinculado a instituições? Eu não apostaria em um destino brilhante.

Eu prometi para mim mesmo que não mais descontruiria sem ao menos tentar propor algo no lugar. Depois de tantas críticas, então, que tipo de mudanças poderiam melhorar esse sistema? O caminho não pode ser a desregulação total, o neoliberalismo está aí para provar empiricamente que isso só traz barbárie. A ampliação dos atores que constroem as normas comprova como o sistema pode se tornar mais democrático e completo, por exemplo, quando os cientistas das humanas se juntaram com os cientistas biomédicos no CONEP. A avaliação ética não pode ser só pró-forma. Ela precisa ser processual e compreender especificidades e contextos de diferentes projetos. Ética não pode se reduzir a burocracia.

 

[1] Página do Conep dentro do site do CNS: http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/index.html
[2] O artigo publicado na revista História Ciência e Saúde de Manguinhos e disponível pelo seguinte link, http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/vamos-discutir-os-comites-de-etica..., reúne contribuições de pesquisadores das ciências sociais e humanas ao debate.
[3] RESOLUÇÃO Nº 510, DE 07 DE ABRIL DE 2016 do CNS referente às ciências sociais e humanas nos comitês de ética pode ser consultada em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/reso510.pdf
 
Lin Franco é biomédico e mestrando em informação e comunicação em saúde. É um dos fundadores e editores Portal Autônomo de Ciências.

 

 

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