Sonhar fazendo uma ciência antifascista
Sonhar fazendo
Em seu texto “Como resistir em tempos brutos” publicado semana passada na edição brasileira do El País[1], a sempre genial jornalista Eliane Brum evoca as artes e a literatura para pensar a resistência: “Quando sinto que a opressão me estrangula, e o medo tenta se infiltrar nos meus ossos, recorro à literatura. A arte conversa com o mais profundo da gente, por isso foi tão atacada pelas milícias da internet. A arte conversa com a liberdade que resiste dentro de nós”.
Suas referências literárias para os tempos difíceis apontam um caminho em que a resistência tem de vir junto da construção de um projeto de futuro onde podemos viver. É necessário “sonhar fazendo”. Eliane diz: “Temos que ser contra e ao mesmo tempo ir tecendo um projeto de futuro, tanto no plano pessoal como no coletivo. Um projeto de futuro onde possamos viver. O presente no Brasil não será possível sem voltar a imaginar um futuro. É preciso compreender que criar um futuro serve muito mais ao presente do que ao próprio futuro. Não dá para viver vendo pela frente apenas horror ou vazio. Tem que sonhar fazendo.” [1]
Apenas para o bem comum
Também vou me propor usar referências literárias para pensar resistência. Resistência antifascista em um tema que é caro a nós do PAC: as ciências. A saudosa e aclamada Ursula K. Le Guin usava suas obras de ficção científica para criar presentes a partir de futuros imaginados. Desde a década de 1960 aborda temas como sexualidade, feminismo, anarquismo, individualismo e comunalismo. Seus livros nunca negaram a dimensão política do mundo, nem dos ficcionais.
Em Os despossuídos[2] de 1974, Ursula narra a trajetória do físico Shevek entre dois mundos que orbitam um ao redor do outro Anarres e Urras. Anarres, possui uma sociedade igualitária, sem hierarquias, originária de um grupo de revolucionários que migraram de Urras após levantes. Urras possui uma sociedade altamente hierarquizada e desigual: exuberância para alguns poucos e pobreza para a maioria. No tempo da narrativa, o povo de Anarres havia cortado as relações sociais com Urras já por gerações e se fechado aos mundos externos. Shevek nasceu e foi criado em Anarres, onde ser egoísta é socialmente repreendido e “proprietário” é xingamento. Como pesquisador, ele entra em contato com as teorias físicas de Urras. Insatisfeito com o isolamento de Anarres, com a falta de liberdades intelectuais e com a personalização que perpetuavam nas ciências de seu planeta, Shevek e seus amigos conseguem negociar para que ele viaje para Urras para terminar de desenvolver sua teoria da física lá.
Em Urras, Shevek é abrigado em uma das universidade de A-Io, país capitalista hegemônico imerso em revoltas populares violentamente reprimidas pela polícia. Lá ele finaliza sua teoria científica, que permitiria o desenvolvimento de um instrumento capaz de promover a comunicação instantânea entre mundos, independente da distância. Nesse tempo, se desilude com a aristocracia científica e política de A-Io, que defende o uso racista, supremacista e militar da tecnologia. Percebe que em A-Io ele e sua teoria são mercadoria, eles pertenciam ao Estado. Ele não podia andar livremente por representar a ideia do anarquismo, a possibilidade de libertação das opressões de A-Io. Por fim, consegue fugir de lá devido à solidariedade de insurrecionários e entregar sua teoria científica para a embaixada terráquea naquele mundo, sob a promessa de que suas ideia seriam utilizadas para o bem comum e compartilhadas entre todos os povos da galáxia. “Vocês não compreendem que eu quero ofertar isso a vocês, e a Hain, e aos outros mundos... e aos países de Urras? Mas para vocês todos!! Para que ninguém possa usá-lo, como A-Io quer fazer, para ter um poder sobre os outros, para ficar mais rico ou vencer mais guerras. Para que não se possa usar a verdade em proveito próprio, mas apenas para o bem comum.” [2]
A reação de Shevek a uma ciência mercantilizada, objetificante, excludente, foi assegurar que o conhecimento não fosse utilizado para subjugar um povo em detrimento do outro, nem para promover dominações e desigualdades de quaisquer tipos. Para ele, só fazia sentido a ciência para o bem comum. Assim também devemos “sonhar fazendo” nossas ciências, especialmente nesses tempos brutais.
Projeto de futuro
Independente dos resultados das eleições, boa parte das instituições que sustentam nossa democracia burguesa já demonstraram seu estado de exceção. O judiciário é conivente com discursos de ódio e declarações que atentam contra a humanidade [3]; parte da mídia hegemônica televisiva - concessão do Estado, é bom lembrar - escolheu fazer propaganda política aberta para o candidato fascista [4] e a outra parte trata gigantescas manifestações contra ele como equivalentes a meia dúzia de verde e amarelos em Copacabana [5]; líderes do exército dão declarações públicas que atentam contra a democracia e contra a constituição [6] e nada acontece; casos de agressão de neofascistas se multiplicam por todo o país e a polícia se limita a dizer que suásticas são símbolos budistas de amor [7].
A academia e as ciências são também instituições que compõem e sustentam nossa sociedade e, como tais, precisarão se posicionar. Ficar isento nesse momento é dar passe livre para a ascensão do fascismo. Durante a ditadura militar brasileira, parte da academia e da intelectualidade foi perseguida, censurada e até morta pelo regime. Mas a história das universidades e institutos de pesquisa é também de resistência, de organização estudantil e sindical, de lutas contra os autoritarismos e contra os valores antidemocráticos. O que faremos dessa vez?
Que nossa resposta seja sonhar fazendo a democratização radical, a abertura ampla e horizontal das nossas instituições de pesquisa, nossas universidades. Vamos fortalecer as cotas e a ampliação das universidades públicas, vamos fortalecer o acesso e a permanência. Vamos mostrar que as mudanças sociodemográficas nas universidades vieram para ficar e para descolonizar os conhecimentos. Vamos orientar nossas atuações científicas em prol do “bem comum”.
Vamos extirpar de vez o machismo, o racismo, o capacitismo, a LGBTfobia, os assédios e a dominação que corroem as relações acadêmicas. Vamos promover a convivência e o encontro de todos os saberes, os sensíveis, os locais, os tácitos e não só os colonizadores. Vamos politizar todas as instâncias das ciências para que não prepondere nem o medo nem o ódio. Vamos garantir que participem de todas as etapas de produção de conhecimento as sociedades civis organizadas interessadas. Vamos levar nossas questões e construir nossas ciências nas praças públicas. Afinal, o fascismo foge dos debates públicos e democráticos como os vampiros fogem do sol. Estamos testemunhando bem isso. Vamos e vamos juntos, afetuosamente.
Que a nossa resistência se dê tecendo um projeto de futuro onde possamos viver. Que as nossas ciências sejam uma resistência ao fascismo.
Referências:
↑[1] O texto completo pode ser lido pelo link: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/08/opinion/1539019640_653931.html
↑[2] O livro “Os Despossuídos” teve sua edição mais recente traduzida para o português pela editora Aleph e pode ser encontrado em livrarias e sebos.
↑[3] Confira em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/11/politica/1536684954_057287.html
↑[4] Texto de Gil Alessi sobre a “A bênção de Edir Macedo para Jair Bolsonaro na TV”: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/05/politica/1538709789_434443.html
↑[5] Texto do colunista da Revista Piauí José Roberto de Toledo sobre a cobertura dos atos: https://piaui.folha.uol.com.br/um-protesto-historico-menos-na-teve/
↑[6] Exemplos aqui: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/noticia/2018/09/08/general-m..., aqui: http://www.esquerdadiario.com.br/Para-general-ministro-da-Defesa-execuco..., e aqui: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43640244
↑[7] Confira na notícia: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45767481